Sustenido

Não sei bem qual a primeira memória que tenho da minha irmã, mas lembro-me dela sempre como um exemplo a seguir.
Talvez a flauta castanha. Recordo-me que eu era plateia assídua dos treinos de partituras, ambos sentados na cama dos nossos pais. A família não tolerava aquelas escalas e repetições infindáveis, muitas vezes com notas agudas que ela expunha com orgulho. Mas eu estava ao lado dela, onde sempre estive, apesar da sua cara de nojo ao mudar-me as fraldas. E sempre que ela me perguntava se a melodia soava bem eu dizia que sim, porque assim o achava verdadeiramente. 
Talvez aqueles calções de lycra rosa, que não deviam ter sido engomados, mas para sua tristeza foram, que ela usava com tanto orgulho, marcando umas pernas fortes de uma adolescente que pedalava depressa a velha bicicleta, porque assim pedia o seu irmão. 
Eu era esse irmão, sentado de lado, extasiado, a sentir o calor e o frio do ar, ouvindo as nossas gargalhadas e acenando ao senhor da garagem que meneava a cabeça num misto de reprovação e preocupação. 
A minha irmã chama-se Daniela, um nome forte e sensível como ela é. Escolhido num laivo de lucidez do nosso pai. Um dos poucos, mas muitos certeiros. Típico. 
Um tom musical que nos leva para alguém que se interessa por nós. Alguém que está sempre alcançável no mundo e que, sem dúvida, o torna melhor. Isso posso garantir.
A Daniela tirou-me uma das braçadeiras no momento exato. O momento que ela percebeu que eu podia nadar só com uma e nesse momento, disse-me sem reservas que eu conseguiria superar o desafio. E assim foi, ensinou-me a nadar. 
A Daniela também me deu um marcador roxo, exatamente o mesmo que eu tinha pedido e eu sei que ela se esforçou para o poder pagar, já que na altura tudo era diferente. Não me perdoo não poder ter agradecido esse gesto. Se ela soubesse o quão foi importante, num momento em que a dor física era tão grande que silenciou qualquer manifestação de alegria…  
Esse roxo significativo de uma cor de alguém que aceita, como sempre o fez, sem julgar. Lembro-me de num sábado de arrumações,
de lhe pedir para me fazer um vestido igual ao da cinderela com um lençol. Ela assim o fez, dezenas de vezes, sem julgamentos. Aceitando o seu irmão como era, diferente mas que dela não queria que fosse de outra forma. Assim sempre defendeu.

Lembro-me também do sentimento de alegria que era ver a Daniela chegar a casa, vinda da faculdade. O meu objetivo era ser sempre o primeiro a vê-la a sair do avião, sem outros comentários laterais, perceber o quão diferente ela estava. Para mim, sempre acenou com entusiasmo. Lá no fundo ela sabia que era eu a pessoa que mais a ansiava. E vice-versa. 

Ela cresceu e amadureceu, assim como a nossa relação. Para meu mal, ela tem uma capacidade infinita de me perceber, mesmo quando eu não quero. Ou de me chamar à razão quando não estou certo. 

Mesmo quando não concordo, ouço a Daniela e respeito-a como se respeita uma figura divina. Para mim ela é tudo isso!

Hoje a partitura da flauta é apenas uma lembrança mas continuamos a ouvir as melodias da vida um do outro.
Ela continua a ser a mesma nota inalcançável, em sustenido. Eu continuo a ser a mesma criança a querer ser tão especial.

Mas a Daniela leva-me na sua bicicleta verde, onde ainda me sento com ela. Já não há um senhor da garagem, mas os obstáculos que nos meneiam a cabeça enfrentamo-os corajosamente, porque somos assim.
E eu sou assim porque ela é a minha irmã.

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